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  • Foto do escritorRoni Carlos Costa Dalpiaz

COLEÇÃO BALBINO DE FREITAS

Dizem que só damos valor a alguma coisa a partir do dia em que a perdemos.

Há dois anos

o Museu Nacional do Rio de Janeiro incendiou e com ele foi “cremada” parte significativa do patrimônio histórico do país. Lá estava “guardada” uma página importante da história de Torres, contada através de artefatos arqueológicos coletados ao longo de quase 40 anos pelo comerciante e curioso Balbino de Freitas.

Poucos torrenses conhecem a história da Coleção Arqueológica Balbino de Freitas, e os que conhecem não sabem de alguns detalhes que só agora, depois de seu desaparecimento, serão esclarecidos.

Conta a lenda que Balbino de Freitas era o maior, e único, comerciante de secos e molhados da vila de Torres. Na sua casa, ao lado da antiga Prefeitura (Intendência), estava instalado o seu armazém e nele era vendido todo o tipo de mercadorias que se possa imaginar que existia naquela época (1900). Além disso, ele fabricava os refrigerantes que lá vendia, assim como um molho, o “Molho Brasil”, conhecido e apreciado em todo o território nacional.

Outra faceta de Balbino de Freitas era a de curioso colecionador, dizem que gostava de escavar os diversos Sambaquis da região em busca de artefatos arqueológicos. E como existiam vários e imensos Sambaquis, sua coleção cresceu a ponto de chamar a atenção de colecionadores e de museus no Rio Grande do Sul, na Argentina e no Rio de Janeiro.

[...] por iniciativa própria, coletava e colecionava artefatos indígenas nos arredores de Torres, no Estado do Rio Grande do Sul. Ele reuniu peças fundamentais para pesquisas que contam a história dos habitantes do município na época da sua formação.

Contavam que a casa de Balbino foi um dos primeiros museus arqueológicos do Brasil e que pela quantidade de itens e pela falta de espaço adequado, ele teria doado ou vendido a sua coleção para o museu Nacional do Rio de Janeiro. Não se conhecia, ou não havia sido contado os detalhes da saída da coleção de Torres para o Rio de Janeiro.

Após uma pesquisa em livros, nos arquivos do Museu Nacional e em uma tese de mestrado de Helena Vieira Leitão de Souza, intitulada “A Coleção Balbino de Freitas e o Museu Nacional” ficou mais fácil encontrar respostas às dúvidas e lacunas desta interessante história.

Então iniciamos pela localização e identificação da Coleção Arqueológica Balbino de Freitas. Ela era de propriedade do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (MN/UFRJ), também conhecido como Museu Nacional da Quinta da Boa Vista ou simplesmente Museu Nacional, localiza-se na cidade do Rio de Janeiro, sendo o maior museu de história natural e antropologia da América Latina. De acordo com informações do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, ela foi comprada por intermédio de Mário de Freitas, um dos herdeiros de Balbino Luiz de Freitas, por trinta contos de réis.

A Coleção Arqueológica Balbino de Freitas apresenta algumas características que permitem reflexões sobre a importância do patrimônio arqueológico, formação de coleções por particulares e a aquisição dessas por museus públicos e a importância do tombamento como política de preservação. Algumas peças estão na exposição permanente do Museu Nacional e outras guardadas em Reserva Técnica do Departamento de Arqueologia. As que estão expostas, se encontram em duas salas referentes à Arqueologia Brasileira: na sala de povos horticultores e na sala de sambaquis.

Um dos destaques da Coleção é um cesto (artefato sambaqui) que foi revestido internamente com resina, conservada apenas em parte e foi coletada em um sambaqui do litoral meridional brasileiro. Trata-se de uma peça rara, em virtude da dificuldade de preservação de materiais orgânicos em climas tropicais.

A Coleção Balbino de Freitas foi vendida ao Museu Nacional pelos seus filhos e não por ele próprio. Não que ele não tenha tentado vendê-la antes de sua morte. Na verdade ele já havia vendido uma parte para o Museu Paulista durante a direção de Hermann Friedrich Albrecht von Ihering, cerca de 180 peças, de acordo com relato do próprio filho. Outra parte, também informado pelo filho de Balbino de Freitas, tinha sido vendida para dois alemães anos antes da primeira venda, como descrito nesta carta escrita possivelmente pelo naturalista do Museu Nacional, José Vidal.

Sabe-se da intenção de venda da coleção pelo próprio colecionador através de cartas enviadas ao Museu Nacional, a primeira em 08 de Julho de 1931 endereçada ao diretor Edgar Roquette Pinto. A correspondência foi escrita de próprio punho e descrevia as, até então, 300 peças. A intenção de vender está expressa no final da carta, logo após a assinatura está a seguinte frase: “esta collecção está a venda”.

A carta seguinte, em 29 de Agosto de 1931, respondida à professora Heloísa Alberto Tores, professora chefe da seção de antropologia e etnografia, já trazia informações sobre a procedência e preço da coleção.

Nessa primeira relação, podemos chamar a atenção para a presença de “bichos de pedra” (zoólitos). Algumas peças foram desenhadas por Balbino, para explicar melhor a sua forma.

A segunda carta de Balbino de Freitas chama a atenção para uma mão de pilão “adquirida” por ele e que estaria em perfeito estado, e também para um “cachimbo de barro com a efígie de um bugre”, também em bom estado e, segundo Balbino, uma peça raríssima. Ele então oferece essa coleção ao Museu Nacional pelo preço de trinta contos de réis.

Conforme Helena V. L. de Souza, a comunicação entre Balbino de Freitas e a equipe do Museu Nacional foi interrompida e somente retomada com a terceira carta do colecionador, datada de 24 de maio de 1935, encaminhada ao diretor do Museu Nacional, o professor Roquette Pinto.

Esta carta parecia mais formal que as outras, pois estava datilografada em papel timbrado de sua fábrica (Molhos Brasil). Nela havia uma nova listagem de sua coleção com 589 peças já com o novo valor de venda: cinquenta contos de réis.

A resposta da chefe da seção de Antropologia e Etnografia, Heloisa Torres, está datada de 11 de dezembro de 1935, e nela consta a recusa da compra pelo Museu Nacional com a alegação de o preço ser muito elevado, mas indicando o interesse do museu pela coleção.

Em 02 de novembro de 1936 Balbino Luiz de Freitas faleceu de miocardite em sua casa, e após dois anos reiniciaram as negociações para a venda da coleção, agora através dos herdeiros.

Primeiramente José Luiz de Freitas, um dos 15 filhos de Balbino, formaliza um pedido de tombamento para a coleção e provavelmente este tenha sido o passo inicial da nova negociação. Além de José Luiz de Freitas, fazem parte da negociação outros três personagens, Mário Luiz de Freitas (filho de Balbino), José Vidal (Naturalista enviado pelo Museu Nacional) e a Heloisa Alberto Tôrres (na época, diretora do Museu Nacional).

De acordo com Helena V.L. de Souza a Coleção Balbino de Freitas, por encontrar-se dentro do Museu Nacional não deixa de ser uma coleção arqueológica, porque estar em um museu não é a única forma de se constituir como patrimônio, mas é uma das mais eficazes. Estando em um museu ela passa a apresentar uma outra face que a diferencia daquelas mantidas em universidades, laboratórios e outros tipos de instituições, passa a ter também o status de coleção museológica, ganhando assim um outro valor, da qual não pode mais se dissociada.

A coleção de Balbino, depois de sua morte, esteve sob os cuidados de seu filho Mário Luiz de Freitas, armazenada na sua casa/mercado. Estas peças, aparentemente, sofriam ataque de insetos e as cerâmicas estariam ameaçadas pela falta de ventilação no ambiente, e como já existia a intenção de vende-la por parte de Balbino, seu filho deixou bem claro que também queria a venda, insistindo em cinquenta contos de réis, mas poderia fazer um “preço especial” de quarenta contos de réis. Porém não venderia as peças isoladamente, somente a coleção inteira, e caso o Museu Nacional fizesse a compra, outras peças seriam acrescentadas à coleção.

Um dos pontos mais interessantes sobre a coleção é de que a maioria das peças tem sua procedência descrita como “sambaqui”, todavia de acordo com o próprio senhor Mário Luiz de Freitas, a maioria das peças foi encontrada “na areia, soltas ou enterradas, muito distanciadas dos Sambaquis”.

Essa particularidade foi constatada pela pesquisadora Helena de Souza, que confirma que os Sambaquis são formados principalmente por conchas e que a Coleção de Balbino não as contém, sendo composta, principalmente, por artefatos líticos e de cerâmica.

Outra curiosidade desta coleção é que as peças catalogadas pelo Museu Nacional, somam um total de 1.170 peças e o número apresentado por seus proprietários é de 1.075 peças. Acredita-se que o motivo desta diferença é que os proprietários contaram algumas peças em conjunto. Outro dado interessante sobre as peças é que haveria uma peça craniana, que não estava à venda, mas que talvez interessasse ao Museu, nunca apareceu na relação catalogada pelo Museu.

A Coleção Balbino de Freitas construiu-se como exemplo de patrimônio arqueológico ao longo dos anos, desde 1900, quando a primeira peça foi coletada, até hoje. Constituir-se patrimônio e ser apresentado como patrimônio é um processo que vai além da inscrição em um livro de tombo, por mais que essa etapa seja necessária e legitimadora. Práticas científicas e o processo de musealização da Arqueologia também são necessários. Portanto, podemos dizer que ela é formada por elementos que compõem a história desses grupos, formadores do que conhecemos hoje como Brasil. Mas ela é também um exemplo da história da prática arqueológica no país e até mesmo da história do Museu Nacional.

E por fim, cabe uma ode ou réquiem à Coleção Balbino de Freitas, “protegida” e tombada num Museu Nacional considerado, até então, um espaço “seguro” e privilegiado de apresentação do patrimônio. Afastado de seu lugar de origem, por motivos financeiros ou preservacionistas, a Coleção Balbino de Freitas viajou, dentro de 18 caixas, por 1400 km até seu destino final. Lá exposta permaneceu por quase 80 anos, mantida, guardada, exibida e estudada até sua definitiva extinção.

O incêndio no Museu Nacional do Brasil, na Quinta da Boa Vista, Rio de Janeiro, na noite de 2 de setembro de 2018, destruiu quase a totalidade do acervo histórico e científico construído ao longo de duzentos anos, e que abrangia cerca de vinte milhões de itens catalogados, entre eles algo que nos representava e de sua maneira nos orgulhava: A Coleção Balbino de Freitas, hoje cinzas da nossa história.

A coleção arqueológica Balbino de Freitas: conchais do litoral sul encontra-se inscrita no Livro de Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico do IPHAN. Seu número de inscrição é 014.

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